domingo, 17 de janeiro de 2010


UM CARDEAL NA BIENAL

O que há de melhor que viajar? Viajar com amigos especiais. E melhor ainda, viajar com amigos especiais para visitar lugares que inspiram a criatividade e aumentam o conhecimento. Foi assim que cada viagem em grupo que fazemos se tornou um bom motivo para criar uma ação que motive a viagem de forma criativa. Em 2008, ano da 28ª Bienal de São Paulo, organizamos nossa ida para presenciar o maior evento brasileiro de arte contemporânea, algo que apreciamos. Os comentários sobre a Bienal não eram favoráveis. A chamada "Bienal do Vazio", cujo tema foi "Em vivo contato", era anunciada como uma das mais pobres Bienais, contando com pouco investimento e apresentando menos trabalhos que o usual.

Um andar inteiro foi deixado vazio, sem obras, com alegação de que serviria para pensar e experimentar a estrutura do próprio prédio conforme constava no site da mostra: "Nesse território do suposto vazio que a intuição e a razão encontram solo propício para fazer emergir as potências da imaginação e da invenção." Propor que os visitantes criem, ou se relacionem com a arquitetura do prédio em função de presenciar um andar vazio, foi tido por muitos como distante, pouco eficaz. O público achou que tinha mais um caráter de protesto, pelos escassos recursos, do que um propósito realmente bem embasado de reflexão sobre o espaço expositivo.
Mas quisemos ir conferir de perto e pensamos que poderíamos fazer uma viagem diferente, levar algo, um objeto talvez, que "testemunhasse" a nossa passagem pelo evento.
Preparamos então um companheiro de viagem, a foto de um pássaro típico do Rio Grande do Sul, um cardeal. A intenção era interferir nos procedimentos habituais de
uma viagem, vendo nosso percurso com um outro olhar, o olhar de registrar a passagem e a presença dessa imagem, quase que uma testemunha do que presenciamos.
Foi assim que se criou uma rotina de registro. A atitude de registrar a presença do cardeal, a cada passo da viagem, nos fez obter fotos pelas quais nao teríamos interesse sem essa proposta.
Criar um ponto intrigante nas imagens de registro era nossa intenção, entender as fotos de registro com um certo estranhamento, de ter uma testemunha que interfere na leitura visual desses lugares desconhecidos ou pouco frequentados. Um cardeal nas fotos torna intrigantes imagens que seriam banais.
Mas não é somente na postura frente aos percursos de uma viagem que gostaríamos de interferir levando um "amigo imaginário" para interagir, era também e, principalmente, na nossa postura ao apreciar as obras de arte. Apreciar a arte contemporânea é muitas vezes difícil. Muitos trabalhos não fazem sentido, ou melhor, não chegam a gerar uma empatia, ou uma atitude reflexiva. Muitos geram mesmo é um vazio. Assim, muito mais que uma vontade de pensar sobre a arte atual, os recursos e a crise da Bienal, o andar vazio faz pensar sobre o NADA. Ao intervir no espaço vazio, inserindo nossa testemunha de percurso, o NADA deixou de ser nada e passou a ter uma intenção: como interagir com esse nada, com isso que observo e perante o qual me posiciono. A reflexão nos pareceu bem mais interessante e produtiva: passar a refletir sobre a proposta da exposição a partir de como queríamos registrá-la.
Essa mudança de postura de observador para agente fez com que mudássemos o contato com a arte dos lugares que visitamos, passando a nao ter mais tanta importância o que os artistas queriam dizer, mas como iríamos interpretar, ou melhor, recriar o que estávamos vendo, inventando uma nova imagem.
Quanto à Bienal, achamos que ela foi pouco expressiva, poucas obras nos chamaram realmente a atenção fazendo refletir. Mas essa própria "pobreza", justificada pelo pouco quantidade de investimento, nos faz refletir sobre a crise que esse tipo de evento vive na atualidade. O grande público sente-se, na maioria das vezes, muito distante do entendimento da arte e do aproveitamento do contato com a arte contemporânea que exige um contato diferente do de um visitante em busca de lazer em tardes de domingo.
Além da Bienal, visitamos a "Paralela", exposição que acontece sempre ao mesmo tempo da Bienal e que apresenta trabalhos tão ou mais interessantes que esta. Na paralela encontramos obras que nos interessaram mais.
O que nos estimula ao ver o resultado dessa ação é o registro desse percurso pelo viés da nossa testemunha ocular, registro de como ela interagiu com os espaços por onde estivemos, de como procuramos lugares especiais pela cidade onde ela melhor se enquadraria para nossos registros - lugares dos quais sem ela não estaríamos à procura, registro de como documentamos essa imagem explorando peculiaridades das próprias obras, como seus reflexos, composição, imagem em movimento, enfim, de como a imagem do cardeal interagiu com o registro, óbvio que sem interferir nas obras ou prejudicá-las.
Foi uma ação totalmente sem propósitos de exposição ou de divulgação. Serviu somente para enriquecer nosso contato com a viagem, com os lugares e, também, com as obras que presenciamos. Para nós, um outro tipo de olhar...
Bobagem para preencher o tempo? Mas o que é a vida senão procurar coisas que preencham nosso tempo para que ele se torne menos sem sentido?